Entre a gama de controvérsias que permeiam a tributação da exploração econômica do software no Carf, desponta o regime de apuração da contribuição ao PIS e da Cofins na comercialização e licenciamento de programas de computador.
A celeuma decorre da circunstância de a Lei nº 10.833/03, no seu artigo 10º, inciso XXV [1], dispor que “serviços de informática, decorrentes das atividades de desenvolvimento de software e o seu licenciamento” sujeitam-se ao regime cumulativo (alíquota de 3,65%). O seu §2º [2], porém, exclui desta forma de apuração o “licenciamento e a comercialização do software importado”, submetendo tais operações ao regime não cumulativo (alíquota de 9,25%).
O ponto central do conflito reside na intelecção da expressão “software importado”.
O primeiro precedente acerca da matéria no Carf, recentemente publicado, foi prolatado pela 1ª Turma da 2ª Câmara da 3ª Seção no Acórdão nº 3201-009.359 [3].
No caso examinado, a empresa recorrente firmou contratos com a Microsoft nos Estados Unidos para distribuir licenças de uso de software a seus clientes domiciliados no Brasil, que adquiriam uma chave de acesso e realizavam o download do programa direto do site da empresa estrangeira. O acordo firmado, nos moldes do artigo 10 da Lei nº 9.609/98, traduz licenças de comercialização, por vezes denominado de contratos de distribuição. Nessas operações, o titular dos direitos patrimoniais do software outorga a terceiro o direito de explorar economicamente o programa de computador, facultando-lhe reproduzi-lo e/ou conceder licenças de uso a usuários finais.
As receitas mensais auferidas com a distribuição das licenças foram tributadas pela companhia no Brasil pelo regime cumulativo do PIS e da Cofins. Segundo as alegações de defesa do contribuinte, a outorga do direito de distribuir as licenças de uso não poderia ser equiparado à uma importação de bens (por falta de desembaraço aduaneiro), tampouco a serviços provenientes do exterior (por ausência de personalização).
A argumentação do contribuinte converge com julgados do Carf que, embora não tratem especificamente da mesma controvérsia, têm pontos de intersecção importantes. Trata-se de jurisprudência do tribunal administrativo pelo afastamento da cobrança do PIS/Cofins-Importação sobre as licenças de software. Nesses precedentes [4], levou-se em conta que tais licenças representam exploração econômica de direitos autorais, seu objeto caracteriza-se como uma obrigação de dar (não seria um serviço) e a contraprestação devida é o pagamento de royalties, conforme enuncia o artigo 22 [5] da Lei nº 4.506/64, portanto, não se subsumindo à nenhuma das hipóteses de incidência plasmadas no artigo 3º [6] da Lei nº 10.865/04 (Acórdão nº 3401-002.469, sessão de 27/11/2013; Acórdão nº 3201-002.404, sessão de 28/9/2016; Acórdão nº 3402-003.821, sessão de 26/1/2017; e Acórdão 3301-004.585, sessão de 17/4/2018).
No caso em comento, porém, a fiscalização reputou como indevido o regime adotado pela empresa, reclassificando a tributação para a apuração não cumulativa, e promovendo a cobrança dos montantes que teriam sido recolhidos a menor das contribuições.
No julgamento do Carf, o conselheiro relator acolheu a defesa do contribuinte, sob o fundamento de que a exceção ao regime cumulativo, contemplada no artigo 10, §2º, estaria condicionada à “importação física” do bem, compreendida como o ingresso de uma mercadoria em um território aduaneiro, daí porque bens adquiridos em meio eletrônico não se caracterizariam como bens importados.
Para distinguir a licença de comercialização de software firmada entre o contribuinte e a Microsoft de uma operação de importação, reportou-se à Lei nº 10.865/04, que, ao criar o PIS e a Cofins incidentes na importação de bens e serviços, estabeleceu como base de cálculo, na hipótese de importação de mercadorias, o valor aduaneiro do bem estrangeiro introduzido no território nacional, exigindo-se, por isso, o trânsito físico (cf. artigos 3º e 7º [7] da mesma lei).
Sem adentrarmos na coesão do voto do relator com o quanto decidido pelo Supremo Tribunal Federal nas Adins 1.945 e 5.659, podemos constatar que a racionalidade da sua manifestação é respaldada por decisões do Carf [8] que analisaram a importação de equipamento informático com o software nele pré-instalado. De acordo com esses julgados, conquanto nas licenças de software não incidam tributos aduaneiros, nas específicas hipóteses de “software residente”, em que o programa é parte integrante do hardware, para fins de valoração aduaneira, o programa será considerado como mercadoria e o seu custo se somará ao preço do hardware, compondo a base de cálculo dos tributos incidentes sobre a operação de importação:
“Em suma, tendo em conta que as presentes autuações referem-se à cobrança de tributos incidentes na importação de equipamentos compostos de circuitos integrados (roteadores, telefones IP, switches, gateway etc.), cujos softwares necessários ao seu funcionamento estavam devidamente incorporados, necessariamente, os valores do hardware e do software integram o valor aduaneiro dos correspondentes equipamentos importados (…)” [9].
Na conclusão do relator, portanto, softwares comercializados por meio de download, sem a utilização de suporte físico para movimentar o programa, não figurariam como “software importado”, uma vez que não haveria a entrada de mercadoria no território aduaneiro.
Contudo, a orientação prevalecente, por 5 votos a 3, resultou da divergência que, em contraponto ao relator, justificou que o conceito de “software importado” não há de ser construído a partir de definições do Direito Aduaneiro, justamente porque software, por se tratar de bem incorpóreo, não precisa ser declarado para a Aduana, sequer possuindo classificação fiscal no sistema harmonizado, logo não poderia ser considerado mercadoria para fins aduaneiros.
Nesse sentido, o voto vencedor coloca que “software importado” significa todo software desenvolvido fora do país e para cá “trazido” por qualquer meio, gravado em suporte físico ou mediante download da internet. E, por isso, as receitas auferidas na comercialização no Brasil de direito de uso de software desenvolvido por empresa sediada no estrangeiro devem se submeter à sistemática do regime não cumulativo.
O raciocínio que predominou neste julgamento do Carf alinha-se ao que vem defendendo a RFB ao interpretar o §2º do artigo 10º da Lei nº 10.833/03. Na aplicabilidade das regras atinentes ao regime de apuração do PIS e da Cofins, o órgão fazendário atribui relevância ao local onde é produzido o programa de computador, sem distinguir a comercialização de licenças de software por meio de download daquela mediante remessa em suporte físico, submetida às tradicionais etapas do despacho aduaneiro previsto no Decreto nº 6.759/09.
Conforme a Solução de Consulta Cosit nº 448, de 18 de setembro de 2017, compreende-se como “software importado” todo programa de computador desenvolvido em país estrangeiro, independentemente da forma como disponibilizado para efeito de internalização no território nacional.
A imposição do regime não cumulativo nessas hipóteses, às empresas que apuram IR pelo lucro real, acaba por elevar a alíquota das contribuições (de 3,65% para 9,25%) nos licenciamentos praticados no Brasil. Apesar deste regime assegurar a apropriação de créditos, as empresas em regra não adquirem muitos insumos tributados para fazer frente ao aumento da carga fiscal, atraindo o disposto no artigo 3º, §2º da Lei nº 10.637/02 e da Lei nº 10.833/03, que veda o creditamento na “aquisição de bens ou serviços não sujeitos ao pagamento da contribuição”.
Ainda sobre os reflexos do julgamento do Carf, podem surgir dúvidas quando a comercialização e o licenciamento do software importado agregarem prestação de serviços informáticos de instalação, configuração, assessoria, consultoria, suporte técnico e manutenção ou atualização, cujas receitas, na forma prevista no inciso XXV do artigo 10º da Lei nº 10.833/03, integram o cálculo das contribuições sociais pela sistemática cumulativa.
Para a RFB, a restrição imposta pelo §2º não se estende às receitas dessas atividades, mesmo que relacionadas a programas importados, desde que o contribuinte proceda à segregação contratual dos serviços prestados, faturando-os de forma individualizada, viabilizando assim a aplicação de dois regimes distintos de apuração [10].
A depender do negócio firmado, na concessão de licenças poderão igualmente ser contratadas adaptações e modificações no software importado para bem atender necessidades específicas do cliente. Embora o inciso XXV não faça menção expressa à atividade de customização, a RFB já se pronunciou no sentido de que o desenvolvimento de melhorias e novas funcionalidades envolve técnicas similares ao desenvolvimento de um programa de computador novo e, por isso, “sendo a customização algo que vai além da simples atualização de um software, carregando em si um componente maior de desenvolvimento, fica evidente que esta forma está englobada pelo inciso XXV, do artigo 10, da Lei nº 10.833/2003” [11].
Ou seja, em virtude de a lei tributária adotar sistema misto de apuração das contribuições, para as situações em que contratados junto à empresa brasileira serviços conexos ao licenciamento de uso do software importado, o contrato firmado deve identificar a fração do negócio referente à licença e aquela relativa aos serviços elencados no inciso XXV, como também as faturas emitidas precisam discriminar as respectivas remunerações devidas. Quando ausente a discriminação nos documentos que lastreiam o negócio, as receitas percebidas serão todas elas tributadas pelo regime não cumulativo.
Como já dito, trata-se tema novo no Carf, carente ainda de maiores debates no tribunal administrativo. De todo modo, podemos identificar nessa análise preliminar as seguintes linhas de pensamento para a exegese do artigo 10º, XXV e §2º, da Lei nº 10.833/03:
1) As licenças de comercialização de software praticadas com empresa estrangeira caracterizam exploração de direito autoral, remuneradas por royalties, não se enquadrando como prestação de serviço proveniente do exterior, nem como entrada de mercadoria no país, logo, não figuram como operação de importação, impondo-se o regime cumulativo;
2) Se o programa de computador licenciado no Brasil é desenvolvido por empresa no exterior, trata-se de “software importado”, aplicando-se o regime não cumulativo.
Aguardemos novos julgados para saber se esses entendimentos irão prevalecer e como deverá ser aplicado o disposto no §2º do artigo 10 da Lei 10.833/03, garantindo, assim, maior previsibilidade e segurança jurídica sobre o regime de apuração do PIS e da Cofins quando empresas no Brasil comercializam e licenciam softwares desenvolvidos fora do país.
Fonte: ConJur