Analisamos situações da zona cinzenta para te ajudar a entender o que de fato caracteriza esta infração aduaneira, desmistificando o senso comum.
A interposição fraudulenta de terceiros em operações de importação é infração aduaneira das mais graves no comércio exterior e é punida com a sanção mais severa do direito brasileiro: o perdimento de bens (ou sua multa substitutiva, equivalente a 100% do valor aduaneiro das mercadorias).
Segundo o texto legal, a infração é de:
Ocultação [de parte envolvida] em operação de comércio exterior, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta.
Vamos por partes:
- A infração pode ser verificada em operação de comércio exterior, isto é, em exportações ou importações, sendo mais comum nesta última.
- A parte ocultada pode ser o sujeito passivo, o real vendedor, o comprador ou o responsável pela operação.
- E a infração não é caracterizada pela mera ocultação, mas pela ocultação realizada por meio de fraude ou de simulação.
- A interposição fraudulenta é, no contexto da norma, o motivo simulatório da ocultação, ou seja, a forma pela qual a fraude ou a simulação são realizadas.
Veja que a interposição, em si, não é uma infração.
Nas operações de importação indiretas, por exemplo, realizadas por encomenda ou por conta e ordem de terceiros, há a figura do importador “interposto” entre o exportador / fornecedor estrangeiro e o encomendante ou real adquirente.
Há infração? Claramente, não!
As modalidades de importação por encomenda e por conta e ordem de terceiros são legítimas e devidamente regulamentadas, podendo ser realizadas normalmente desde que observados seus requisitos: vinculação das partes no Siscomex, negociação em contrato escrito, indicação das partes nos documentos da importação etc.
A interposição, para caracterizar infração, precisa ser fraudulenta, ou seja, precisa existir um intuito, um motivo, um objetivo para ocultação de uma parte envolvida na operação. Esta intenção pode ser em razão de: falta de capacidade financeira comprovada, quebra da cadeia de IPI, não observância das regras de transfer pricing, aproveitamento indevido de benefício fiscal de ICMS… a lista é grande.
Até aqui parece tranquilo: em uma importação direta para consumo próprio e realizada com recursos próprios, não tem interposição fraudulenta. Por outro lado, uma importação em que o real interessado não possui habilitação no Radar e se utiliza de outra empresa com o propósito de realizar importações, caracteriza a infração.
É o “preto e branco”. Mas e como fica a zona cinzenta? Quer dizer, aquelas situações que estão entre e o branco e o preto? Situações do dia-a-dia, da dinâmica das importações, que muitas vezes causam dúvida.
Vamos às situações concretas:
Não indicação do adquirente ou encomendante na Declaração de Importação
Nesta situação hipotética, sua empresa é adquirente ou encomendante em operação de importação realizada por uma importadora contratada. Apesar de toda a negociação ter ocorrido de maneira correta, normalmente, e de o câmbio já ter sido fechado, houve um equívoco na emissão dos documentos e no registro da Declaração de Importação: os dados da sua empresa, como adquirente ou encomendante, não foram devidamente indicados.
Exagerando um pouco, o fiscal aduaneiro no porto desconfia, parametriza a importação para o canal cinza e, sem instaurar o procedimento de fiscalização, ainda no curso do despacho aduaneiro, aplica a pena de perdimento por interposição fraudulenta. E agora?
Não houve intenção de fraudar, apenas um erro escusável.
Houve interposição? Sim! A interposição foi fraudulenta? Não!
Em um caso como este, o que ocorreu foi o que se chama de “ocultação inocente”, mas cancelar a pena de perdimento aplicada dependerá da capacidade de provar que a operação foi regular e que a não indicação da sua empresa como adquirente / encomendante foi realmente um erro.
Por isto, o cuidado com a documentação instrutiva da importação e com as informações prestadas no registro da Declaração de Importação deve ser redobrado. Fique atento!
Venda no atacado de produtos importados
Agora imagine a seguinte situação, sua empresa importa – diretamente ou como encomendante ou adquirente em operação de importação indireta por meio de uma trading company – um determinado produto, digamos artigos de vestuário, camisetas.
Sua empresa não comercializa as camisetas importadas diretamente para consumidores finais. O objetivo da importação, então, é distribuir os produtos para lojas que os comercializem.
A importação ocorreu nos conformes, o fechamento de câmbio para o exportador foi realizado devidamente, assim como o pagamento dos tributos devidos e aos prestadores de serviço envolvidos na cadeia logística.
Na etapa de distribuição, uma rede nacional de lojas de departamentos se mostra interessada em toda as camisetas, ou seja, em toda a carga que sua empresa importou, e por um preço negociado dentro das condições de mercado, você vende os produtos “no atacado” para esta rede.
Um ano depois, a Receita Federal inicia um procedimento de fiscalização em revisão aduaneira e solicita a apresentação de todos os documentos relacionados a esta importação, inclusive aqueles relacionados à venda que você realizou no atacado.
E aí vem a dúvida: há interposição fraudulenta? O fato de todas as mercadorias terem sido vendidas para um único comprador após a importação caracteriza esta infração?
A resposta é não! A venda no atacado, por si só, não caracteriza a infração de interposição fraudulenta. Mas o contexto diz muito nesses casos e é preciso uma avaliação criteriosa.
A venda no atacado e mesmo a rapidez no giro de estoques (quando a entrada e saída de mercadorias ocorre rapidamente e o estoque fica zerado ou próximo disto), não são capazes de, isoladamente, servirem de fundamento para sustentar a aplicação do perdimento por interposição fraudulenta.
Importação por conta e ordem para fornecimento a clientes
Vamos criar um cenário no qual a sua empresa atua no mercado interno como distribuidora de produtos eletrônicos. Um cliente importante encomenda uma quantidade significativa de produtos, e sua empresa firma com este cliente um contrato de fornecimento. Neste contrato, não está especificada a origem dos produtos, se nacionais ou importados, e o pagamento ocorreu de forma antecipada.
Para cumprir o contrato, sua empresa encomenda de uma empresa importadora a importação dos produtos, que é realizada como uma importação por encomenda.
Então vem a dúvida: o fato de o encomendante da importação já possuir um cliente predeterminado, torna necessária a indicação do cliente do contrato de fornecimento nos documentos da importação? Há interposição fraudulenta?
Neste caso a resposta é: depende! Depende do quê? Da demonstração de que o cliente do contrato de fornecimento não teve nenhuma participação na importação e que a sua relação com o encomendante ocorreu apenas em uma operação interna.
De fato, não há espaço nos documentos instrutivos da importação para indicação dos dados das empresas envolvidas na cadeia do produto nas etapas posteriores à importação. Quer dizer, a declaração de importação tem espaço (e é de preenchimento obrigatório) apenas para qualificação do importador e do adquirente / encomendante. Isto porque, justamente, o que é fiscalizado é a importação, e não as etapas seguintes de comercialização.
O CARF já decidiu que não há ilegalidade ou ilicitude no modelo utilizado nesse nosso exemplo, mas quando aquele órgão julgador administrativo começa a analisar as situações concretas, há diversos casos em que o perdimento foi mantido, ou porque o cliente final (do fornecimento) era do mesmo grupo empresarial do exportador, ou porque o adquirente declarado não existia de fato, ou porque o encomendante sozinho não tinha capacidade financeira para custear a importação…
Então a análise, especialmente por parte do Fisco é bastante criteriosa e se houver indícios de que houve participação do destinatário final (cliente do fornecimento) já na operação de importação, a interposição fraudulenta poderá estar caracterizada.
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Como comprovar a regularidade da operação
A questão é técnica e depende de provas. A Fiscalização e as instâncias administrativas de julgamento – DRJ’s e o CARF – vão analisar todas as peculiaridades do caso concreto, relação entre empresas, erro escusável, origem dos recursos, negociação etc., para enquadrar, ou não, a operação fiscalizada na tipificação da infração.
Para evitar autuação, é necessário provar documentalmente que a importação ocorreu de maneira lícita.
A conclusão, disso tudo, é que há elementos fundamentais na demonstração da regularidade das operações, para afastar qualquer dúvida de que não houve infração. Dentre os elementos mais importantes, destacam-se:
- Recursos utilizados na importação, que precisam ser de origem lícita e pertencer ao importador (ou ao adquirente, se for uma conta e ordem).
- Comprovação da negociação da importação com o fornecedor estrangeiro, com e-mails, documentos do embarque e até mesmo por meio de contrato de compra e venda internacional.
- Formalização de contratos, especialmente das operações por conta e ordem ou por encomenda e também de fornecimento ou de distribuição no mercado interno, caso a empresa realize estas operações.
- Comprovação da capacidade operacional, com funcionários contratos, sede declarada e equipada para o funcionamento da empresa, espaço para armazenagem dos importados etc.
O segredo é, portanto, documentar e manter em boa ordem todas as tratativas relacionadas às importações e ao prosseguimento da cadeia de consumo no mercado interno. Deste modo, caso a empresa seja fiscalizada, será possível demonstrar de modo a não deixar dúvidas de que as importações ocorreram de forma regular e de que não houve interposição fraudulenta ou qualquer infração aduaneira, evitando autuações e, por consequência, a aplicação da pena de perdimento de mercadorias ou sua multa substitutiva.
Se houver dúvida ou se sua empresa estiver enfrentando uma fiscalização desse tipo, procure um advogado especializado de sua confiança.
Gilli Basile Advogados permanece à disposição de todos os interessados em maiores esclarecimentos.
Por Jaqueline Weiss.