Há 20 anos, operadores portuários criaram uma espécie de pedágio para liberação para os recintos alfandegados de contêineres importados. Essa cobrança recebeu a alcunha de “THC2”, pelos recintos alfandegados, justamente por se tratar de um pagamento em duplicidade, relativo à movimentação das cargas, já incluído na tarifa denominada box rate, paga pelo armador. Sem lastro regulatório ou previsão em lei ou contrato, o setor logo percebeu que a imposição da THC2 tinha objetivo claramente anticompetitivo. No Porto de Santos, os operadores pretendiam encarecer o custo e, por consequência, o preço dos demais recintos alfandegados na armazenagem de contêineres.
Para alívio do mercado portuário e, certamente, da economia nacional, a cobrança da THC2 foi barrada, pela sexta vez, no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Segundo votos expressos durante sessão de julgamento no Conselho, a prática representa riscos de danos irreversíveis ao mercado e infringe a lei da concorrência quanto “ao abuso de poder dominante, advinda da criação artificial da relação monopolística, entre o terminal e importador, e à limitação da livre iniciativa, causada pela discriminação de adquirentes no mercado de armazenagem”, como ressaltou o conselheiro Luiz Baidro. Assim como Baidro, outros conselheiros do CADE acompanharam o relator Maurício Bandeira Maia, reafirmando a ilegalidade da matéria.
Para se ter ideia da importância da decisão, vale retomar um pouco da triste história da THC2. Em 2003, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) julgou a THC2 como ilegal. Em 2005, o CADE também já havia condenado a prática. Mas, em 2010, a Diretoria da ANTAQ, mesmo sob os holofotes de escândalos de favorecimentos de operadores portuários amplamente divulgados pela imprensa, resolveu enfrentar tanto a sua área técnica, como o CADE, na tentativa de “legitimar” a cobrança da THC2, publicando a Resolução 2.389/2012.
Ao tomar conhecimento da resolução, o CADE deixou claro que as competências da ANTAQ não se confundem com as suas. Foi nessa oportunidade que o presidente do Conselho esclareceu: “a mera autorização regulatória não significa que a atividade desempenhada por uma empresa esteja em conformidade com a legislação pertinente. Para que isso ocorra, é imprescindível que haja a cumulação da (i) autorização regulatória, caso cabível, e da (ii) autorização concorrencial“. Sobre esse mesmo fato, os Diretores da ANTAQ foram condenados ao pagamento de multa por deficiência contida em tal Resolução.
Na ocasião, anos depois, em 2018, a resolução, por não oferecer recurso suficiente para manter de pé a cobrança da THC2, foi duramente criticada pelo TCU, que condenou os ex-diretores da ANTAQ ao pagamento de multa por deficiência na regulação. Nas palavras do Ministro Walton de Alencar, “em relação à ANTAQ, com todas as vênias, eu a vejo como um órgão que simplesmente foi capturado pelos interesses que ela deveria regular”.
Devido a tamanha confusão causada pela Resolução de 2012, a norma foi submetida à revisão. O resultado disso foi um processo cujo trâmite conteve estranhezas do início ao fim. Foram observados equívocos procedimentais, desconsideração de opiniões técnicas da própria ANTAQ, manifestações do mercado, do CADE e do Ministério da Economia simplesmente ignoradas. O produto dessa revisão — a Resolução Normativa 34/2019, que autorizou a cobrança da THC2 — passou então a ser questionada por ações judiciais e representações no TCU.
Não obstante, os operadores portuários, estrategicamente, têm externado reações de “surpresa geral” e “choque” com esse posicionamento do CADE. Mas, ora! Surpresa, para quem? Provavelmente, para quem não acompanha o “imbróglio THC2” do início, ou tem a visão anuviada pela parcialidade. Afinal, o CADE manteve a ilegalidade da THC2 por 15 anos. Neste período, foram ao menos quatro composições distintas do Conselho que apontaram a ilegalidade do preço. Essa será a quinta.
Os operadores afirmaram também que a Resolução 34 foi fundamentada com argumentos técnicos de qualidade. Difícil acreditar. Todos os fundamentos técnicos, historicamente sérios e de qualidade da área técnica e jurídica da ANTAQ foram pela ilegalidade da THC2.
No conturbado processo que antecedeu a Resolução de 2019, foram desconsideradas 78 páginas de uma nota técnica da Gerência de Regulação Portuária da Agência, contrária à THC2, em favor de apenas seis laudas, impostas pela Superintendência de Regulação, sem qualquer menção ao mérito da cobrança.
Os operadores afirmam ainda que houve inspeção realizada nos terminais. Ora, uma inspeção em terminal constata contêineres movimentados daqui para acolá… e isso é absolutamente irrelevante para a discussão da THC2. O tema é jurídico e perpassa i) a inexistência de lei ou contrato entre o operador e o recinto para justificar a cobrança; ii) a existência de contrato entre operador e armador, no qual a movimentação de contêineres já é remunerada pela THC; e iii) a clara responsabilidade do Armador pelo pagamento desse preço, porque ele é o interessado em performar o contrato de transporte. Olhar a dança de contêineres em absolutamente nada se relaciona com o caso.
Os operadores dizem ainda que o posicionamento do CADE discorda frontalmente da RN 34. É uma completa inversão da análise, uma vez que é a ANTAQ que, por lei, deve deferência ao CADE em matéria concorrencial. Mas, como se vê, historicamente, a despreza para julgar a THC2 “competitiva”, mesmo sem sequer tangenciar a boa técnica da análise concorrencial, o que aliás, fugiria da sua capacidade institucional. E não há em norma alguma a afirmação de que a decisão da ANTAQ prevalece sobre a decisão do CADE, o que seria um descalabro.
Os operadores, então, passaram ao jus sperniandi. Afirmam que o posicionamento do CADE causa insegurança nos investidores e pode causar desequilíbrio financeiro em desfavor da União. O que os operadores afirmam, na verdade, é que o investidor deve desprezar 15 anos de posicionamento sólido da autarquia pela ilegalidade da THC2 e desconsiderar o fato em suas previsões. Porém, certamente, os investidores possuem competência e conhecimento suficientes para avaliação de riscos para seus negócios, incluindo as premissas do Conselho.
Não há outra interpretação, senão a ganância escancarada de operadores quando constataram a redução de serviços de cais e aumento da importância para as receitas de pátio. Com o aumento da competição entre os operadores portuários nos serviços de descarga, vislumbraram oportunidades de parar de brigarem entre si e investirem na briga com recintos alfandegados pela armazenagem. Bastaria, então, um “pedágio” para ampliar suas receitas de pátio. Afinal, valendo-se de seu poder de mercado derivado de sua posição geográfica nas operações de importação de contêineres, seria simples criar dificuldades na liberação desses contêineres aos demais Recintos. Simples, fácil, mas ilegal e anticompetitivo.
A THC2 era ilegal quando foi criada e é ilegal agora. A decisão do CADE é um choque para… ninguém.
Bruno Burini
Fonte: Jota