Em 9.4.2018, a 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 1ª Seção de Julgamento do CARF proferiu o acórdão n. 1301-002.921, por meio do qual negou provimento ao recurso de ofício interposto pela 10ª Turma da Delegacia da Receita Federal de Julgamento em Belo Horizonte (DRJ), para confirmar que inexiste simulação na constituição de duas pessoas jurídicas pelos mesmos sócios para explorar atividades similares.
A contribuinte, que atua no ramo da construção de rodovias e ferrovias, já havia obtido êxito no julgamento proferido pela DRJ, tendo o CARF mantido o entendimento manifestado em primeira instância no sentido de cancelar os autos de infração de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSL).
De acordo com o relatório da referida decisão, a fiscalização procedeu ao lançamento sob o fundamento de que a autuada teria reduzido indevidamente a incidência de IRPJ e de CSL sobre os resultados de suas atividades, ao optar pela apuração dos referidos tributos pelo regime do Lucro Presumido para os anos-calendário 2010 e 2012, conforme previsto nos art. 25 e 26 Lei n. 9430, de 27.12.1996, e regulamentado pelo art. 516 do Decreto n. 3000, de 26.3.1999(Regulamento do Imposto de Renda).
Ainda segundo a fiscalização, a autuada teria criado duas pessoas jurídicas com o intuito de dividir a sua receita bruta entre as duas empresas, ambas pertencentes aos mesmos sócios, para evitar a superação do limite legal para opção pelo lucro (R$ 48.000.000,00 à época). Consequentemente, a autuada teria obtido economia tributária indevida, comparando-se o montante recolhido com o que seria devido no caso de apuração dos referidos tributos sob o regime do Lucro Real.
Além da identidade de sócios e das participações societárias idênticas, o Fisco alegou que a sociedade utilizada pela autuada para a divisão e pulverização de sua receita bruta detinha o mesmo endereço administrativo, comercial e produtivo da contribuinte, além de Contrato Social e exercício de atividades comerciais semelhantes, o que levou a fiscalização a crer que, na realidade, se trataria de um \”negócio único\”.
Por conseguinte, entendeu a fiscalização que o correto método de determinação do regime de tributação das sociedades dependeria da soma de suas receitas brutas. Dessa forma, apenas se o valor obtido com a soma de tais valores estivesse dentro do limite legal para adoção do regime do Lucro Presumido é que a contribuinte poderia se valer de tal método.
Assim, baseando-se nos argumentos supracitados, a fiscalização entendeu pela ocorrência de simulação. Na visão do Fisco, a utilização pela autuada de outra sociedade, pertencente a seus próprios sócios, com o objetivo de optar pelo regime do Lucro Presumido, evidenciaria o caráter simulado da operação, bem como comprovaria a inexistência de propósito negocial na estrutura formada. Os principais indícios de simulação citados pela fiscalização foram a manutenção da mesma sede, o mesmo quadro societário com idêntica proporção entre as participações societárias e a exploração de atividades similares.
Em sua defesa, a contribuinte alegou, dentre outras questões, (i) a inexistência de ilicitude quanto ao compartilhamento de estruturas realizado pelas sociedades, (ii) a fragilidade do trabalho fiscal com relação às provas produzidas, que não teriam se prestado a comprovar a suposta simulação da operação, e (iii) que em momento algum qualquer uma das sociedades teria deixado de recolher os tributos devidos.
Ademais, a contribuinte refutou a inexistência de propósito negocial ao demonstrar que apenas ela poderia exercer determinadas atividades de maior complexidade, em detrimento da outra sociedade, que executaria obras mais simples, o que daria suporte à necessidade da segregação das atividades em duas pessoas jurídicas distintas.
Igualmente, a contribuinte ressaltou que, ao longo de 12 (doze) anos de existência, somente teria ultrapassado o limite do Lucro Presumido em quatro exercícios, sendo que a divisão de atividades existia desde o momento de constituição das pessoas jurídica, o que afastaria o propósito exclusivamente tributário da segregação em referência.
A contribuinte ainda enfatizou a existência de autonomia jurídica, laboral e patrimonial entre as sociedades envolvidas na operação, por se tratar de pessoas jurídicas distintas, com empregados diferentes e atividades comerciais que, ainda que semelhantes, não são idênticas.
Nestes termos, para afastar a alegação fiscal de que a contribuinte e a outra sociedade constituiriam um \”negócio único\”, também se valeu do argumento da contradição do Fisco em incluir a última como responsável solidária na autuação fiscal. Afinal, se realmente existisse apenas um negócio comercial, não haveria que se falar em responsabilidade solidária da sociedade que o compusesse. Assim, ao alegar a existência de responsabilidade solidária, o próprio Fisco teria reconhecido a autonomia das duas pessoas jurídicas.
Por fim, a autuada alegou que, de forma isolada, o compartilhamento físico de estruturas entre ela e a outra sociedade não poderia, em momento algum, constituir prova de identidade negocial. Isso porque o referido compartilhamento consistia apenas no estabelecimento de uma sala comum dentro de sua estrutura física, sendo que, para caracterização do \”negócio único\”, as sociedades deveriam no mínimo compartilhar os mesmos empregados, clientes e equipamentos necessários à realização dos serviços, o que jamais teria ocorrido.
Em primeira instância administrativa, a DRJ julgou procedente a impugnação apresentada, por entender que a fiscalização não teria comprovado a ocorrência de simulação no caso concreto (conduta dolosa da contribuinte), nos termos do art. 149, inciso VII, do Código Tributário Nacional (CTN) [1].
O processo foi remetido em CARF por meio de recurso de ofício, cujo provimento foi negado, por maioria de votos, pela 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 1ª Seção de Julgamento, por meio do acórdão n. 1301-002.921, de 9.4.2018, ora examinado.
O voto vencedor do caso consignou que a autuação careceu de indícios que pudessem comprovar a ocorrência da simulação na situação fática, bem como que a segregação das atividades desenvolvidas pela contribuinte e a outra sociedade, por si só, não poderia levar à equivocada conclusão de que teria ocorrido a simulação.
Com base nessa linha de raciocínio, o Relator concluiu que:
\”O direito de se auto-organizar autoriza a constituição de sociedades pelos mesmos sócios, que tenham por escopo atividades similares, complementares ou mesmo distintas. Se corretamente constituídas e operadas, afasta-se o entendimento de que se trata de mera simulação.\”
A rigor, o entendimento do CARF está correto. Realmente, conforme destacado no voto condutor da decisão, a fiscalização não se desincumbiu de comprovar que a segregação das atividades entre a contribuinte e a outra sociedade foi simulada. Como bem expôs o voto do Relator, \”para que determinada operação seja considerada simulada (art. 167, I, do Código Civil), devem ser consideradas as características do caso concreto, demonstradas através de provas\”.
Ao contrário, no caso concreto, o voto condutor acolheu o argumento da contribuinte de que apenas ela possuiria estrutura parar realizar determinadas atividades produtivas de maior complexidade, o que corroborava, no caso concreto, com a necessidade da segregação. Assim, o CARF afastou a suposta ilegalidade da conduta praticada pela contribuinte, tal como alegada pela fiscalização.
Ainda, a decisão enfatizou que, no caso em exame, foi preservado o princípio contábil da Entidade, definido pelo próprio Relator como aquele que \”professa a verdade intuitiva e jurídica de que o patrimônio da entidade, objeto de contabilização, tem de estar completamente separado do patrimônio de seus sócios ou acionistas\”.
Tal conclusão decorreu da inocorrência de confusão patrimonial entre a contribuinte e a outra sociedade, sendo que ambas coexistiam com estruturas próprias de equipamentos operacionais, além de empregados próprios e da realização de projetos de forma individualizada.
Por fim, a decisão acolheu o argumento do contribuinte no que tange à existência de autonomia jurídica, laboral e patrimonial em meio à operação autuada. O Relator afirmou que a contribuinte teria apresentado provas suficientes para comprovar a referida autonomia, e que o compartilhamento do endereço, além de ter ocorrido dentro da legalidade, não teria o condão de justificar eventual confusão patrimonial entre as sociedades.
A decisão é importante na medida em que se pautou nas provas colacionadas aos autos para verificar a eventual existência de simulação. Em situações como essa, a análise cuidadosa e individualizada das provas e das peculiaridades é imprescindível para um desfecho correto do caso. É até possível que a divisão de atividades tenha tido como motivo a economia tributária, mas somente esse aspecto não é suficiente para declarar a invalidade de determinada estrutura.
Ora, se a divisão de atividades entre duas pessoas jurídicas é efetiva, não havendo confusão patrimonial entre as mesmas, não se pode admitir a declaração de invalidade da estrutura. O fato de o motivo da divisão de atividades estar relacionado com eventual economia tributária não deve impactar na análise jurídica do tema. O que deve ser investigado, nesse tipo de situação, é se houve algum vício ou descompasso entre a causa prática do negócio praticado e os efeitos obtidos.
Isso porque cada ato ou negócio jurídico tem uma causa, denominada pela doutrina como \”causa jurídica\”, \”causa de atribuição patrimonial\”, \”causa substancial\”, \”causa típica\”, dentre outras denominações, inclusive simplesmente \”causa\”, a qual corresponde à função que o ato ou negócio desempenha no ordenamento jurídico segundo a disciplina que a lei lhe outorga (quando típico). A causa é a função assegurada pela lei para a realização de atos da vida patrimonial e negocial, identificando-se pelo conjunto da prestação e da contraprestação de cada ato ou negócio jurídico e, por conseguinte, com o efeito que ele produz. Moreira Alves preleciona que, além de corresponder à \”função prática\” do ato ou negócio jurídico, a causa não se confunde com o motivo que leva ao estabelecimento dos negócios jurídicos [2].
Assim, se a divisão entre duas sociedades foi efetivamente respeitada, existindo, de fato e de direito, duas sociedades distintas, é irrelevante o motivo pelo qual tal divisão foi criada.
Além disso, é sempre importante ressaltar que o ordenamento jurídico brasileiro não incorporou a existência de propósito negocial como requisito para a validade de negócios jurídicos, de forma que a suposta falta de propósito negocial não poderia motivar a desconsideração dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes. Nesse sentido, veja-se o acórdão n. 1302-001.150, de 7.8.2013 [3].
Tanto isso é verdade que regras gerais anti-elisivas, baseadas em propósito negocial ou em interpretações econômicas, foram repelidas pelo Congresso Nacional em pelo menos em quatro oportunidades: (i) em 1966, quando o art. 74 do projeto do Código Tributário Nacional(\”CTN\”) tentou introduzir a interpretação econômica no sistema tributário brasileiro; (ii) em 2001, quando o projeto da Lei Complementar n. 104/2001tentou introduzir uma regra geral anti-elisiva ampla no art. 116, parágrafo único, do CTN, cuja redação foi alterada e restringida pelos congressistas brasileiros para alcançar apenas negócios dissimulados; (iii) em 2002, quando a Medida Provisória n. 66/2002foi aprovada sem as disposições anti-elisivas originalmente previstas; e (iv) em 2015, quando a Medida Provisória n. 685/2015 tentou introduzir a obrigatoriedade de divulgação de planejamento tributário no Brasil, mas foi rejeitada pelo Congresso nacional [4].
Diante das considerações acima, é de se destacar a importância da decisão em questão, que representa um importante precedente para situações em que contribuintes utilizam estruturas jurídicas que proporcionam economia tributária. O impacto desse caso para outras situações, contudo, é limitado pelas peculiaridades de cada caso, que devem ser objeto de análise específica.
[1] \”Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos:
(…)
[2] ALVES, José Carlos Moreira. \”As Figuras Correlatas da Elisão Fiscal\”. Revista Fórum de Direito Tributário n. 1. Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 11. No mesmo sentido, vide: ALVES, José Carlos Moreira. Palestra inaugural do XVIII Simpósio Nacional de Direito Tributário do Centro de Extensão Universitária. \”Pesquisas Tributárias – Nova Série – 10\”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 13.
[3] Confira-se o seguinte trecho: \”Os julgadores do CARF prestarão um grande serviço ao Estado e a sociedade brasileiras se imprimirem segurança jurídica e isonomia ao sistema, evitando que suas decisões fiquem ao sabor lotérico do entendimento de cada conselheiro sobre conceitos vagos não positivados como, por exemplo, falta de propósito negocial, que não passa de uma construção jurisprudencial alienígena sem respaldo no ordenamento jurídico pátrio.\”
[4] BARRETO, Paulo Ayres. Planejamento Tributário: Limites Normativos. São Paulo: Noeses, 2016, pp. 163-164.